sábado, 4 de março de 2017

Amigo da onça

Não era fácil ser ele. Naquela manhã, menos ainda.
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Uma preguiça incontrolável o prendia à cama como um super imã. Precisava salvar o mundo, mas não havia quem o salvasse daquele pecado. Meio sonhando, meio despertando, sua mente viajava pelas situações mais inusitadas. Algumas reais, é verdade, a exemplo do que ocorrera no dia anterior, quando um cachorro, latindo para ele, disse: "aquele cara na minha árvore acabou de assaltar um jovem e está ali apurando o produto do crime, tranquilamente! Não vai fazer nada?"
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Sim, ele podia ouvir e falar com os animais. E sim, ele era um agente da polícia. O cachorro sabia disso e, com razão, chamava-o à responsabilidade. O que o animal não sabia é que o dia dele havia sido muito puxado e que ele não estava nada animado para mais um perrengue. Resolveu ignorar o cachorro e seguir seu rumo para casa. Não adiantou muito, pois os latidos ficaram na sua cabeça e o acompanharam até a hora em que finalmente pegou no sono. 
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Havia conseguido seus super poderes ainda adolescente, quando encontrou uma sereia entre um mergulho e outro na Ilha do Mel, litoral do Paraná. Ele não lembra bem quais foram as palavras dela, muito menos em qual língua ela falava. Só lembra da beleza daquele ser e da missão que ela lhe deu: combater o mal. Quando voltou à vida, estava cercado de curiosos e com um bombeiro-resgatista pressionando-lhe o peito. Mal acabou de cuspir toda a água engolida, percebeu que o mundo havia se tornado um lugar mais barulhento. Agora, ele era capaz de ouvir e compreender nitidamente o que cada mamífero no mundo tinha para lhe dizer. Não só isso: se tocasse o animal, era capaz também de acessar todas as suas memórias. 
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Aprendeu a ignorar os bichos e passou muito tempo resistindo a aceitar o seu encargo. Mas, um dia, sua vida tomou um novo rumo. 
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Nessa época, já estava com vinte anos e trabalhava com refrigeração, realizando manutenções em ar condicionados e afins, no interior do Paraná. Cumprindo uma ordem de serviço na casa de um importante político da região, ficou impressionado com o fato do homem ter uma onça de estimação enjaulada em seu quintal. Por motivos óbvios, ele não ia a zoológicos, e nunca tinha tido a chance de "conversar" com um felino daquele porte. Confiando nas barras de ferro, se aproximou e ensaiou um papo com o "bichano".
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- Então, como você foi parar aí?
- Fui cassada, me acertaram um tiro e apaguei - falou a onça, meio entediada e já sabendo que aquele humano não poderia lhe compreender. Quando acordei, já estava aqui, e isso já tem uns sete anos.
- Que história triste.
Nesse momento, o animal saltou para o fundo da jaula, olhando desconfiado para aquele homem.
- Vivendo aqui, com essas pessoas, você já deve ter visto de tudo, não é verdade?
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Ainda acuada, ela não falou mais nada. Ele, frustado, foi embora.
Alguns meses depois, voltou àquela mansão e, novamente, foi ter com a onça. Dessa vez, a conversa fluiu.
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- Fiquei muito confusa da última vez que você veio aqui. Pensei bastante, e acho que você pode me ajudar a me vingar das pessoas que fizeram isso comigo. Posso contar com você?
- Olha, posso até conversar com você, mas não espere muito de mim. Quando recebi esse dom, recebi também a missão de combater o mal, mas nunca tive coragem de fazer nada nesse sentido. Além de me comunicar com mamíferos, se toco o bicho, acesso todas as suas memórias. Percebe o tamanho desse poder? Contudo, gosto demais de estar vivo e sei bem do que o mal é capaz.
- Eu adoraria encontrar quem te deu esse dom, para elogiar sua burrice. Como é possível? Tanta gente no mundo, e a pessoa escolhe justo um covarde! Vou te contar só uma coisa, aí você decide se vai me ajudar ou não: bem aí onde você está, há um saco de ossos enterrado de um garoto de quinze anos, que eu mesma comi.
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Dessa vez, quem deu um enorme salto foi ele. 
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- Estava já há três dias sem receber comida e estava literalmente louca. Eles trouxeram o garoto e o colocaram de joelhos aqui na frente. Disseram que ele ia pagar pelo que tinha feito, que ele não poderia ter arranhado a Lamborguini do deputado, e que não adiantava dizer que havia sido sem querer. Passaram o coitado para o lado de cá e a minha fome falou mais alto. Coisa de instinto, entende?
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Ele estava horrorizado com a história que a onça estava contando. Não conseguia falar nada, pois tinha um nó no lugar da garganta. Mais uma vez foi embora e não atendeu ao pedido de ajuda do animal.
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Naquela noite e pelo resto da semana não conseguiu mais dormir. Quando fechava os olhos, via o garoto sendo devorado. Não aguentava mais essa tortura e resolveu que ia ajudar a onça com a sua vingança, afinal uma pessoa que mata por um carro arranhado não pode ficar sem uma punição. A partir daí, a cada dia, até voltar na casa, ficava mais e mais ansioso: "o que mais aquela onça sabe?"
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O grande dia chegara. Fora designado novamente para um serviço na casa do político e logo estava lá em frente à onça.
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- Bom, quero me desculpar pela minha covardia. Pode contar comigo para a sua vingança. Mas é bom você ter um plano, pois não sou muito criativo com essas coisas.
- Primeiro: não vou agradecer, pois você está apenas cumprindo sua obrigação! Mas o meu plano é bem simples. Toque em mim, acesse minhas memórias, e transcreva tudo o que eu vi e ouvi o Sr. Deputado fazer e dizer. Não esqueça que minha audição é muito superior a de vocês e eu ouço tudo que é dito por aqui, mesmo dentro da casa. Selecione as partes mais relevantes, com todos detalhes, e entregue anonimamente à Polícia Federal. Eles já estão investigando o "chefe" e vieram aqui algumas vezes, mas são tão tontos que não encontraram as evidências mais importantes. Basta fazer isso e já me sentirei vingada. Tudo bem?
- Claro. Quero minhas noites de sono de volta.
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Ele então, com algum medo, passou o braço pelas grades e tocou a fronte da onça. Em segundos, uma podridão sem fim chegou à sua mente. 
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- Pronto, feito! 
- Ok, conto com você. Vá lá e faça a justiça acontecer.
- Farei com muito gosto. Só mais um detalhe: nas suas memórias não vi ninguém ser assassinado.
- Bom, digamos que eu tenha exagerado um pouco para conseguir te convencer a me ajudar, mas tenha certeza que toda essa corrupção e apropriação de dinheiro público matou muito mais gente do que você pode imaginar.
- Tenho que me lembrar de nunca mais confiar em uma onça. Mas você tem razão. Adeus.
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Ele cumpriu a sua palavra e logo a polícia teve acesso a um mar de provas contra aquele político e contra muitos outros. Já se vão mais de dois anos e a operação "Lava Jato" ainda é notícia.
Nosso herói percebeu que não poderia fugir da sua missão e precisava honrar o dom que recebera. Resolveu se tornar agente de polícia e, desde então, o mal não tem tido trégua. Na verdade, pela manhã, quando a preguiça fala mais alto, às vezes sim...
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Epílogo:

- Alguém pode me explicar como aqueles miseráveis conseguiram encontrar o dinheiro e os computadores que estavam no esconderijo do jardim? Quem abriu o bico?
- Chefe, nenhum de nós falou nada. 
- Vou acreditar que foi a onça, então!

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